Acaba de sair do forno a mais recente pesquisa social do Núcleo de
Opinião Pública (NOP), intitulada Diversidade Sexual e Homofobia no
Brasil, Intolerância e respeito às diferenças sexuais nos espaços
público e privado – uma realização da Fundação Perseu Abramo, em
parceria com a alemã Rosa Luxemburg Stiftung.
Com dados coletados em junho,de 2008, a pesquisa percorreu processo de elaboração semelhante ao de estudos anteriores do NOP
3,
tendo sido convidados pela FPA para definir quais seriam as prioridades
a investigar entidades e pesquisadores dedicados ao combate e ao estudo
da estigmatização e da discriminação dos indivíduos e grupos com
identidades sexuais que fogem à heteronormatividade – lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).
Com o intuito de subsidiar ações para que as políticas públicas
avancem em direção à eliminação da discriminação e do preconceito contra
as populações LGBT, de forma a diminuir as violações de seus direitos e
a facilitar a assunção e afirmação de suas identidades sexuais,
buscou-se mensurar tanto indicadores objetivos de práticas
discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas, quanto as
percepções sobre o fenôme- no (indicadores subjetivos, portanto) e
manifestações diretas e indiretas de atitudes preconceituosas. A
pesquisa cobriu assim um amplo espectro de temas, de modo que o relato
que segue constitui tão-somente uma leitura preliminar – entre muitas
que certamente os dados obtidos permitirão – e sobre parte dos
resultados que, à primeira vista, parecem mais relevantes.
O preconceito dos outros
Indagados sobre e existência ou não de preconceito contra as pessoas
LGBT no Brasil, quase a totalidade da população responde
afirmativamente: acreditam que existe preconceito contra travestis 93%
(para 73%
muito, para 16%
um pouco), contra transexuais 91% (respectivamente 71% e 17%), contra gays 92% (70% e 18%), contra lésbicas 92% (para 69%
muito, para 20%
um pouco) e, tão freqüente, mas um pouco menos intenso, 90% acham que no Brasil há preconceito contra bissexuais (para 64%
muito, para 22%
um pouco). Mas perguntados se são preconceituosos, apenas 29% admitem ter preconceito contra travestis (e só 12%
muito), 28% contra transexuais (11%
muito), 27% contra lésbicas e bissexuais (10%
muito, para ambos) e 26% contra gays (9%
muito). (
Gráficos 1a e 1b)
O fenômeno de atribuir os preconceitos aos outros sem reconhecer o
próprio é comum e esperado, posto que por definição a atitude
preconceituosa é politicamente incorreta.
Gráfico 1a
Gráfico 1b
No entanto, chama a atenção, neste caso, as taxas relativamente elevadas
de pessoas que admitem ter preconceitos contra os grupos LGBT: na
pesquisa Idosos no Brasil, em 2006, 85% dos não-idosos (16 a 59 anos)
afirmaram que há preconceito contra idosos na sociedade brasileira, mas
apenas 4% admitiram ser preconceituosos em relação aos mais velhos; e na
pesquisa Discriminação Racial e Preconceito de Cor no Brasil, em 2003,
90% reconheciam que há racismo no Brasil, 87% afirmaram que os brancos
têm preconceito contra os negros mas apenas 4% dos de cor não preta
assumiram ser preconceituosos em relação aos negros.
Certamente, é preciso aprofundar a investigação sobre o fato de o
preconceito contra a população LGBT ser mais admitido. Mas duas
hipóteses, não necessariamente excludentes, parecem concorrer para
explicar esse contraste: tomando o dado em sua “literalidade” (como em
geral convém, até prova em contrário), a maior admissão de preconceito
contra LGBT seria expressão de um preconceito efetivamente mais
arraigado, mais assimilado e menos criticado socialmente. A alta
disseminação de piadas sobre “bichas” “veados” ou “sapatonas” por
exemplo, e sua aceitação social, como atesta a presença cotidiana de
personagens caricaturais em novelas e programas na TV, considerados
humorísticos, também seriam evidências disso.
A segunda hipótese é que a maior admissão de preconceito contra LGBT
tem a ver com a “natureza” da identidade sexual, para muitos vista como
uma opção ou preferência – em contraste com as identidades “raciais” ou
etárias que, de modo mais evidente, independem das escolhas individuais,
sendo assim não passíveis de crítica (ao menos deste ponto de vista) e,
conseqüentemente, mais incorreto discriminá-las. De fato, 31% discordam
(25%
totalmente) que “ser homossexual não é uma escolha, mas uma tendência ou destino que já nas nas ce com a pessoa” e 18% concordam apenas
em parte (só 37% concordam
totalmente) com isso. Ora, se acho que é gay (ou lésbica) quem quer, posso considerar sua opção um erro e punir (discriminar) quem a faz.
É sintomático a esse respeito que, diante de duas alternativas, se
“os governos deveriam ter a obrigação de combater a discriminação contra
homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais” ou se “isso é um
problema que as pessoas têm de resolver entre elas” 70% concordem com a
segunda alternativa, contra apenas 24% que entendem que o combate
contra a discriminação da população LGBT deve ser objeto de políticas de
governo. Em contraste, em 2003, 36% avaliaram que “os governos deveriam
ter a obrigação de combater o racismo e a discriminação racial” contra
“apenas” 49% que consideraram que “isso é um problema que as pessoas têm
de resolver entre elas, sem a interferência do governo”.
O preconceito dissimulado
Como na pesquisa sobre a questão racial, nesta também partimos do
pressuposto que a maioria não admitiria os próprios preconceitos. Assim,
antes de qualquer referência explícita à temática da discriminação e do
preconceito, o questionário tratou de captar manifestações indiretas de
intolerância com a diversidade sexual. (
Gráfico 2)
Gráfico 2
Inicialmente, solicitou-se a cada entrevistado que dissesse o que
sentia normalmente ao ver ou encontrar desconhecidos de diferentes
“grupos de pessoas”: “(1) repulsa ou ódio, não gosta nem um pouco de
encontrar; (2) antipatia, não gosta muito, prefere não encontrar; (3)
indiferença, não gosta nem desgosta, tanto faz encontrá-los ou não; ou
(4) satisfação, alegria, gosta de encontrá-los” Considerando-se a soma
de (1) e (2) como indicador de aversão ou intolerância, dentre 28 grupos
sociais sugeridos – grupos raciais, econômicos, em conflito com a lei,
étnicos, religiosos etc. – as identidades sexuais que discrepam da
normalidade heterossexual só perderam em taxa de intolerância para dois
líderes incontestes: ateus (42% de
aversão, sendo 17% de
repulsa ou ódio e 25% de
antipatia) e usuários de drogas (respectivamente 41%, 17% e 24%).
Dizem não gostar de encontrar transexuais 24% (10% de repulsa/ ódio,
14% de antipatia), travestis 22% (respectivamente 9% e 13%), lésbicas
20% (8% e 12%), gays e bissexuais 19% cada (ambos 8% e 11%) –
praticamente igualados em taxas de aversão, por exemplo, a garotos de
programa (25%), prostitutas (22%), ex-presidiários (21%) e ciganos
(19%); acima, por exemplo, de mendigos (11%), judeus (11%) e muçulmanos
(10%) e “gente com aids” (9%), e ainda muito acima de índios (3%),
negros ou orientais (2% cada) e brancos (menos de 1%).
A seguir definiu-se homossexuais como “pessoas que se interessam
afetiva e sexualmente por pessoas do mesmo sexo” e foram faladas frases –
“coisas que costumam ser ditas sobre os gays e as lésbicas, que algumas
pessoas acreditam e outras não” –solicitando-se a cada entrevistado que
manifestasse seu grau de concordância ou de discordância com as mesmas.
(
Gráfico 3)
Gráfico 3
A frase epígrafe “Deus fez o homem e a mulher com sexos diferentes para
que cumpram seu papel e tenham filhos” tem a concordância, em algum
grau, de 92% (sendo 84%
totalmente), contra apenas 5% que discordam; e concordam que a “homossexualidade é um pecado contra as leis de Deus” 66% (58%
totalmente),
contra 22% que discordam (17% totalmente) –dados que revelam o tamanho
da colaboração religiosa para a intolerância com a diversidade sexual. E
a contribuição do discurso médico não fica muito distante: 40%
concordam (29%
totalmente) que “a homossexualidade é uma doença que precisa ser tratada” embora 48% discordem (41%
totalmente).
São claras as expressões de preconceito também as concordâncias
majoritárias com a idéia de que “as pessoas bissexuais não sabem o que
querem, são mal resolvidas” (57% concordam, sendo 44%
totalmente,
contra 27% de discordância), e com a afirmação de que “quase sempre os
homossexuais são promíscuos, isto é, têm muitos parceiros sexuais” (45%
concordam, contra 36% que discordam). Há ainda o apoio a potenciais
medidas discriminatórias, manifestadas nas frases: “casais de gays ou de
lésbicas não deveriam andar abraçados ou ficar se beijando em lugares
públicos” (64% de concordância, sendo 52%
totalmente, contra 27% de discordância), e “casais de gays ou de lésbicas não deveriam criar filhos” (47% concordam, 38%
totalmente; 44% discordam, 35%
totalmente).
Por fim, 37% concordam que “a homossexualidade é safadeza e falta de
caráter” e 34% que “os gays são os principais culpados pelo fato de a
aids estar se espalhando pelo mundo”.
Em suma, a primeira leitura desta pesquisa dá números ao que já se
suspeitava: por trás da imagem de liberalidade que o senso comum atribui
ao povo brasileiro, particularmente em questões comportamentais e de
sexualidade há graus de intolerância com a diversidade sexual bastante
elevados – coerentes, na verdade, com a provável liderança internacional
do Brasil em crimes homofóbicos. O que indica que há muito por fazer,
em termos de políticas públicas, para tornar realidade o nome do
programa da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República, criado em 2004, Brasil sem Homofobia – ele mesmo, segundo a
pesquisa, conhecido por apenas 10% da população (2% dizem conhecê-lo e
8% já ouviram falar).
Outros temas foram abordados no levantamento, inclusive de políticas
contra a discriminação LGBT para as áreas de educação, saúde, emprego,
justiça, cultura e direitos humanos, mas não há espaço aqui para
tratá-las. Se lembrarmos ainda que os resultados gerais aqui expostos
(médias nacionais) podem acobertar contrastes importantes num país como o
nosso, atravessado por desigualdades de classe social, de gênero,
raciais e regionais, fica o convite aos interessados para aprofundarem a
análise desta introdução, buscando mais dados da pesquisa Diversidade
Sexual e Homofobia no Brasil, em breve disponíveis no portal da FPA e em
futura publicação da Editora da FPA.